quinta-feira, 5 de janeiro de 2012


O Homem que reinventou o Natal ..até hoje..
Foi um conto natalício que ajudou Charles Dickens a mudar a percepção social da Inglaterra vitoriana, e a sua influência mantém-se até hoje.
Charles Dickens, o criador de "Grandes Esperanças" e "Oliver Twist", candidato a mais célebre escritor da História a par de Homero, Shakespeare e Júlio Verne, foi a maior figura literária da Inglaterra vitoriana, tão famoso em vida como após a morte, a 9 de Junho de 1870. Na antecâmara do bicentenário do seu nascimento - Charles soprará 200 velas no próximo dia 7 de Fevereiro, ‘in excelsis' - irão escrever-se milhares de páginas sobre o legado de "David Copperfi eld" ou de "Tempos Difíceis", agora que o tempo não está para brincadeiras. Talvez se publiquem algumas notas de rodapé sobre um pequeno conto, entre os vários que o homem de Landport escreveu, chamado "A Christmas Carol" ("Um Conto de Natal", com diversas edições portuguesas).
Dickens escreveu outras histórias alusivas à quadra, mas esta era a sua preferida. Foi a primeira que leu nas sessões de leitura pública que conduzia em auditórios de Inglaterra e dos Estados Unidos - uma espécie de cinema itinerante da imaginação pelo mais cinematográfico dos escritores - e o acaso ditou que fosse também a última, antes da crise de coração (tinha-o grande mas fraco) que o irá vitimar. Mas há um pormenor em "A Christmas Carol" que transcende o encanto narrativo, e os méritos literários: nenhum texto fez mais para ressuscitar o espírito natalício. Foi o mais íntimo, e o mais universal, presente de Dickens ao mundo.
A história de "A Christmas Carol" confunde-se com a história da infância e adolescência de Dickens. O segundo de oito filhos de John e Elizabeth Dickens, Charles, um miúdo pequeno e ensimesmado, teve uma infância feliz em Chatam, condado de Kent, no sudeste de Inglaterra. O pai era um escriturário da marinha britânica, e Charles, embora apreciasse as brincadeiras ao ar livre, era um devorador de livros, uma pequenina máquina de aprender histórias, intrigas, aventuras, romances. Tinha uma memória fotográfi ca, e fi xava rostos, tiques, gestos aos grumetes que se embebedavam no porto, aos operários navais que suavam nos estaleiros, às senhoras de chapéus floreados que sorriam pelo passeio fluvial. Mas o pai, John, sofria de uma doença contemporânea - vivia e gastava acima das suas possibilidades - e o idílio terminou. A família foi obrigada a  mudar-se para Camden, um bairro degradado de Londres (e nesta época, bairro degradado de Londres era um eufemismo) e, em 1824, o pai é preso por causa das muitas dívidas, na penitenciária de Marshalsea, em Souhtwark (mais tarde, Dickens usará o cenário dessa prisão em "Little Dorrit"). A família é forçada a mudar-se também para a penitenciária - deixara de haver dinheiro para pagar a casinha de Camden - excepto Charles, que é deixado para trás, primeiro sob o tecto de Elizabeth Roylance, uma amiga da mãe, depois no sotão de um obeso agente judicial de insolvências, em Lant Street. Charles tinha 12 anos e, para ajudar a família, teve que abandonar a escola e trabalhar dez horas por dia numa fábrica de graxa em Hungerford Stairs, junto à actual estação de comboios de Charing Cross. Era um mundo de sombras, fome, alçapões, com escadas em ruínas e ratazanas, o mundo em cinza, de candeeiros trémulos e futuros defi nhados , que palpita aos soluços em "Oliver Twist" e "Tempos Difíceis". O minúsculo Charles passava as tardes de névoa - escurecia cedo, mesmo na Primavera - num quarto quase do seu tamanho, a pôr etiquetas nas embalagens, a atar cordéis às latas, e um dos rapazes com a mesma tarefa chamava-se Bob Fagin (será o nome do terrível carcereiro das crianças mendigas de "Oliver Twist"). Quando a bisavó paterna de Charles morreu, deixando uma razoável herança ao neto John, o pai Dickens lá conseguiu pagar as dívidas, e a família abandonou a penitenciária. Mas, durante algum tempo, a mãe de Charles manteve-o na fábrica. O desleixo, e a ameaça de abandono, marcaram para sempre o miúdo. Todas as suas obras, sustentando-se na intensidade poética do estilo e na mestria romanesca da narrativa, nunca perderão de vista um realismo crítico sobre as miseráveis condições de vida dos mais pobres e, em especial, a incúria face às crianças, abandonadas na rua ou condenadas à escravatura das fábricas (dos óbitos registados na capital em meados do século XIX, metade tinham menos de onze anos de idade).
Duas décadas mais tarde, no Outono de 1843, Dickens já era um autor consagrado (editara com sucesso, entre outros, "Oliver Twist" e "Nicholas Nickelby"), mas o quinto fi lho do casamento com Catherine Hogarth - tinham juntado os trapos em 1836, e ela deu lhe filhos, dez, numa pontualidade britânica - vinha a caminho. As fracas vendas dos primeiros fascículos do último trabalho, "The Life and Adventures of Martin Chuzzlewit" (Dickens escreveu quase todos os seus livros em fascículos semanais ou mensais, publicados em jornais e revistas), obrigaram-no a pensar na obra seguinte. Mas escrever o quê? A família não parava de lhe pedir dinheiro - era a herança do pai John - e havia uma hipoteca leonina sobre a casa recém-adquirida de Devonshire Terrace.
Charles tinha o compromisso de fazer um discurso em Manchester, de apoio ao Atheneum, um organismo que oferecia educação para adultos aos trabalhadores das fábricas têxteis da cidade - em meados do século XIX, a Revolução Industrial enchia os bolsos brancos dos empresários e pintalgava de negro as metrópoles com os rostos sujos do operariado. Charles visitara há poucas semanas a Field Lane Ragged School, para crianças abandonadas de Londres, e percebeu que a educação ajudava, mas não era cura da viciosa sangria dos pobres. No comboio, de regresso à capital, lembrou-se do egoísmo do pai, do cheiro a graxa em Hungerford Stairs, das crianças doentes pelo trabalho nos têxteis, do sotão de Lant Street, dos tempos difíceis em Camden, e decidiu o que ia escrever: chamar-lhe-ia "A Christmas Carol".
Desenrolou a história na cabeça em passeatas nocturnas de quinze quilómetros pelas ruas de Londres - estava frio, a caminhada aquecia-o, o ambiente soturno era perfeito - e, na semana anterior ao Natal de 1843, a 17 de Dezembro (faz agora 168 anos), publicou o conto às suas custas, com capa debruada a dourado e ilustrações a cores de John Leech. Mas o preço era reduzido, cinco ‘shillings', para toda a gente poder comprá-lo. Nos primeiros dias, vendeu seis mil cópias. "A Christmas Carol" é a história de Ebenezer Scrooge, um empresário forreta, um escroque que não pensa um segundo no seu semelhante. É a alma mais escura da cidade - Dickens reconhecerá depois que se baseou no seu pai, o pai preso pela mania das grandezas, que o enfiara na fábrica de graxa. Scrooge tem um ódio de estimação pelo Natal, "esse tempo para nos vermos um ano mais velhos, não uma hora mais ricos". Na véspera de Natal, o velho Ebenezer é visitado pelo espírito de um antigo sócio, Jacob Marley, falecido sete anos antes.
Marley, que era da mesma laia de Scrooge, lembra a este que a vida depois da morte é mais do que desagradável para os egoístas e avisa-o de que, ainda nessa noite, será visitado por três fantasmas: o do Natal passado, o do Natal presente, o do Natal futuro. O primeiro fantasma lembra a Scrooge como este era na juventude - gentil, cheio de vida, ainda atento à compaixão; o segundo mostra a Scrooge o traste em que ele se transformou; o terceiro, o do Natal futuro, abre ao velho uma janela sobre o que está prestes a acontecer - Tiny Tim, o filho doente do fiel secretário de Scrooge, Bob Cratchit, irá morrer em breve por falta de assistência médica em condições (Tim é baseado no filho inválido de um amigo de Dickens, proprietário de uma fábrica de algodão em Ardwick). Pouco a pouco, o coração gelado de Scrooge derrete, e o arco da mudança completase: Scrooge passa o dia de Natal com o sobrinho Fred, a quem nunca ligou patavina, partilha o perú que oferece a Cratchit e  compromete-se a ajudar Tiny Tim, o puto que simboliza todos os putos, em todos os Natais. É a perfeita parábola da redenção. Ao longo de 1844, o livro torna-se um enorme sucesso (ainda hoje, há mais adaptações de "A Christmas Carol" ao cinema e teatro do que de qualquer outra obra de Dickens). O conto ultrapassa as fronteiras do consumo literário, percorre as ruas, contagia o espírito social da época, transforma a consciência colectiva e, ainda nesse ano, as acções de solidariedade, em Londres e por todo o país, aumentam a um ritmo inesperado. Décadas antes, no início do século XIX, a celebração do Natal estava em declínio. A vaga puritana de Oliver Cromwell deixara as suas marcas na Grã-Bretanha, e o carimbo secular dos Natais da Idade Média era considerado impróprio em 1800 - além disso, a explosão do trabalho nas fábricas deixava pouco tempo para festividades.
O Natal torna-se uma formalidade religiosa, celebrada quando muito na esfera comunitária. Mas nunca é efusiva, muito menos em família. Quando é editado, o livro de Charles Dickens recupera o Natal familiar (que Dickens nunca teve), da dádiva e da entreajuda (que lhe foram negadas no início da adolescência), das oportunidades de recomeço - que Dickens agarrou com as duas mãos, em 1829, ao tornar-se repórter ‘freelancer' com 17 anos. Aproveitando o balanço da introdução do costume germânico da árvore de Natal, trazido pelo príncipe Alberto, e o aparecimento dos primeiros cartões de festas, Dickens acrescenta um sinal fresco de unidade e esperança ao velho costume da Consoada: a primeira vez que se ouve a expressão "Merry Christmas" é na voz das personagens de "A Christmas Carol". Quando o escritor morre, em Junho de 1870, alguém fi xa a pergunta de uma menina londrina ao pai, um operário fabril: "Se o senhor Dickens morreu, isso quer dizer que o Pai Natal também morreu?". Estavam os dois mais vivos do que nunca.
toledo
fonte - economicosapo.